"A Cantiga é uma Arma": uma expressão com uma história
A intervenção de António Branco, professor universitário e ex-Reitor da Universidade do Algarve, na sessão solene comemorativa do 25 de Abril, na Assembleia Municipal de Loulé.
Um texto
que merece uma leitura atenta e convida à reflexão:
Agradeço a todos os grupos partidários da Assembleia
Municipal o convite, que tanto me honrou, para intervir nesta sessão solene de
celebração do 25 de Abril.
Trata-se de uma data muito importante para todos nós,
por ter sido o dia em que voltámos a poder aspirar a viver num país alicerçado
nos valores da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.
Disso fala a canção de Zeca Afonso, «Grândola, Vila
Morena», em boa hora escolhida pelo Movimento das Forças Armadas como senha
para o arranque definitivo das operações militares que conduziriam à libertação
de um país subjugado pela ditadura salazarista.
Inspirado nela, pergunto desde já, interpelado por
essas palavras tão exigentes, tão fortes e tão belas: somos hoje mais livres,
somos hoje mais iguais, vivemos hoje num país mais fraterno?
E respondo sem hesitação: em comparação com a situação
que existia até ao 24 de abril de 1974, sim, somos mais livres e mais iguais e
o país é mais fraterno – mas não tanto quanto nos permitimos sonhar.
Não sei sequer se o coletivo que somos continua a
caminhar determinadamente em direção à Utopia desenhada por esse tripé da
Democracia que decidi convocar na abertura desta intervenção.
Todavia, aparentemente não foi este o assunto que me
propuseram para esta sessão. Sugeriu-me o Prof. Adriano Pimpão, em nome da
Assembleia Municipal, que desenvolvesse o seguinte tema: «A palavra como arma
da democracia». Tentarei, por isso, dar corpo à tarefa de que fui incumbido e
que aceitei com entusiasmo e sentido de responsabilidade.
Quando o Prof. Pimpão mencionou o tema, ecoaram em mim
o título de uma canção de José Mário Branco e uma afirmação de Wittgenstein.
Quanto à canção, creio que todos os presentes sabem do que falo: trata-se de «A
cantiga é uma arma». A frase do filósofo da linguagem diz mais ou menos assim:
«Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo».
Pareceram-me dois bons motivos para esta intervenção,
mesmo que isso implique, como implicará, apropriar-me de ambos para desenvolver
as ideias que gostaria de vos apresentar. Começarei pelo segundo.
A frase de Wittgenstein, que uso há muitos anos nas
aulas, interessa-me não tanto pelo significado específico que o autor lhe
atribui nas suas teses filosóficas, mas porque, retirada desse contexto,
exprime autonomamente a ideia muito forte da existência de uma relação
intrínseca entre a linguagem que possuímos e a extensão do nosso mundo.
Imaginemos, por exemplo, que me seria possível traçar
um círculo envolvendo o conjunto das palavras que uso nos vários contextos da
minha vida: segundo aquela frase, ficaria assim desenhada também a fronteira do
mundo que conheço e sobre o qual sou capaz de me exprimir.
Desta imagem decorre que, quanto menor é esse conjunto
de recursos linguísticos, menor é o mundo disponível e que, por isso, quanto
mais formos capazes de alargar o nosso vocabulário útil, mais rico será o mundo
aberto à nossa frente.
Sendo intrínseca, esta relação pode ser vista na
perspetiva inversa: quanto mais fechado e pequeno for o mundo em que me movo,
mais reduzido será o conjunto de palavras de que necessito para nele viver – e
também será verdade que quanto mais o meu mundo se alargar, mais enriquecida
sairá a minha capacidade de expressão através de palavras.
Este esquema muito simples abre infinitas
possibilidades exploratórias, todas em torno da relação que se estabelece entre
a linguagem e o mundo individuais.
E dela decorre um princípio que muito prezo: o
processo aquisitivo da linguagem, ao longo da vida, determina o grau de
qualidade do mundo em que me movo, sendo ele não só o mundo que sou capaz de
reconhecer e nomear mas também o mundo sobre o qual sou capaz de me exprimir e
com o qual sou capaz de interagir mais ou menos livremente.
Para muitos filósofos, aliás, não existe mundo para
além daquele que designamos através de palavras – razão pela qual temos sempre
de arranjar uma palavra nova para uma realidade nova, seja ela um objeto, um
hábito, um inseto, uma bactéria, uma doença – e por aí adiante.
Esta é uma das caraterísticas principais das
sociedades letradas, ou seja, das sociedades baseadas na escrita e na leitura:
tudo, mas mesmo tudo, desde a mais simples emoção à ideia mais complexa, do
mais ínfimo objeto à mais intricada organização, tudo assenta na nossa
capacidade de nomear, de comunicar, de exprimir através das palavras.
Temos tanta necessidade delas que até inventámos uma
para adjetivar o que é difícil de traduzir por palavras: a palavra «inefável».
Voltemos à frase inicial: «Os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo.» Para além dos aspetos já referidos, ela
encerra outra ideia relacionada com a própria origem mítica da linguagem, a
ideia segundo a qual, mesmo quando usadas profanamente num quotidiano
avassalador, elas mantêm uma espécie de poder matricial, uma espécie de força
mágica pronta a ser ativada sempre que alguém – ou um coletivo agindo em
uníssono – convoca esse poder.
Os grandes poetas fazem-no, alguns políticos também.
Os poetas fazem-no para nos revelarem a íntima sacralidade das palavras,
escondida debaixo dos usos informes que lhes damos no dia a dia, e assim porem
em evidência a sacralidade do próprio mundo que nomeiam com elas. Esse uso
particular da linguagem, a poesia, é talvez aquele que melhor exerce a
extraordinária capacidade humana de alargar os limites do mundo através da
linguagem.
Por isso a poesia é em si mesma património, porque é
sempre vestígio da antiquíssima faculdade humana de nomear e, através da
nomeação, criar o que antes não existia inteiramente. Por isso a poesia é saber
e nos propõe, em cada verso, uma refundação do mundo em que vivemos.
Ouçamo-la, numa das suas infinitas faces:
O velho abutre é sábio e alisa as
suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
Publicou Sophia de Mello Breyner Andresen este poema
em 1962 (Livro Sexto). Os seus contemporâneos reconheciam imediatamente na
figura sinistra do «velho abutre» o ditador António de Oliveira Salazar.
Poderíamos, então, ser tentados a concluir que,
derrubada a ditadura no dia 25 de Abril de 1974, este curto poema perdeu
atualidade, servindo tão-somente enquanto documento poético de um momento
especialmente doloroso da nossa História.
Os grandes poetas distinguem-se dos pequenos, contudo,
por não confinarem os poemas à realidade que os inspirou. Os grandes poetas
legam-nos imagens e verdades universais – o que significa que as suas imagens e
verdades ultrapassam as fronteiras do tempo em que foram inventadas, falando a
qualquer um, em qualquer época.
Sabendo isto, sei também que o velho abutre de Sophia
continua vivo, sábio e alisando as suas penas. Basta estar atento ao mundo em
que vivemos para constatar esta verdade: andam por aí muitos abutres velhos, ou
seja, humanamente inférteis.
O que nos diz Sophia sobre eles? Em primeiro lugar,
que são «sábios e alisam as suas penas.» A palavra «sábio» tem aqui uma
conotação francamente negativa, significando que são muito hábeis.
A ação de «alisar as penas» também contém outro
sentido profundo: parece-me metáfora de outra habilidade, a de se aprumarem,
para disfarçarem a sua própria decrepitude moral e ideológica. Por exemplo,
quando diretamente interpelados sobre a sua adesão à Democracia, são capazes de
disfarçar o ódio que lhe têm.
Diz-nos mais Sophia: «a podridão lhe agrada».
Literalmente, como sabemos, os abutres alimentam-se de cadáveres em
decomposição. Torna-se assim evidente que onde não haja podridão os abutres não
sobrevivem, sendo forçados a procurar fortalecimento noutras paragens.
A última ideia do poema é de uma agudeza certeira: «e
seus discursos / Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.» Ficamos a saber
que os abutres, afinal, são muito hábeis a usar as palavras, tão hábeis que
causam a diminuição das almas que os escutam. Assim, os abutres são o oposto
dos poetas.
Regresso, agora, ao primeiro tema que me propus
desenvolver: «Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.» O
conhecimento – o convívio íntimo, se preferirem – com este poema de Sophia abre
extraordinariamente a minha mundividência, na medida em que me proporciona
instrumentos de análise política e ideológica especialmente acutilantes e
novos.
Mais poderoso que mil comentários na televisão ou mil
crónicas em jornais, ele produz uma síntese poética a partir da qual qual fico
mais capaz de organizar o meu pensamento político: não tenho nenhuma
dificuldade em identificar os abutres já instalados na cadeira do poder por
esse mundo fora, em reconhecer os aprendizes de abutres que andam por aí,
também em Portugal, incansavelmente à procura dos territórios onde já se sinta
o forte odor da carne em decomposição.
E não posso deixar de ver nesta forte metáfora da
«podridão» todas as doenças graves de que padecem as democracias ocidentais: as
gritantes e crescentes desigualdades sociais, o domínio da alta finança sobre o
poder político, os clubismos partidários exercidos em circuito fechado, a
corrupção, as várias formas de nepotismo e os abusos de poder, a ilegibilidade
de algumas decisões judiciais, a opacidade do sistema político, o uso da
mentira ou da ofensa pessoal enquanto instrumento de combate político, os enormes
retrocessos do Estado Social – e por aí fora.
Basta-me refletir profundamente sobre o poema de
Sophia para entender que é nos territórios em que a Democracia falha que medram
os abutres. E o que eles fazem também se torna evidente: discursos que «têm o
dom de tornar as almas mais pequenas.»
De facto, a manha dos abutres é tal que são capazes de
interpretar bem a vilania que vai nas nossas almas e alimentá-la, sendo que a
vilania da alma é sempre a nossa maior fraqueza: o egoísmo autossatisfeito, a
frustração invejosa, a cedência aos medos subjetivos, a atribuição sistemática
de responsabilidade externa aos insucessos individuais ou coletivos, a ânsia de
protagonismo social, o ódio ao desconhecido, o impulso destrutivo
autossuficiente, o fechamento total à diferença, o empobrecimento cultural, a
alienação, etc.
Por isso, os abutres da atualidade perceberam melhor
do que ninguém o quão fácil pode ser conquistar o poder através do exercício do
voto.
Se a sua arma é a palavra inteligentemente
manipuladora que vai ao encontro da pequenez em que por vezes nos afundamos, o
seu exército somos nós.
Como cantou outro grande poeta da música, José Mário
Branco, «ser anão não é coisa do corpo / é forma do espírito morto.» O espírito
morto está na origem do apodrecimento da carne de que se alimentam os abutres.
No início, anunciei que a minha intervenção se
apoiaria em dois motivos principais: a frase que pedi emprestada a Wittgenstein
e o título de uma canção de José Mário Branco.
Passo, agora, ao segundo: «a cantiga é uma arma».
Apropriando-me dessa metáfora e aceitando o repto que me foi lançado por esta
Assembleia Municipal, direi que «a palavra é uma arma».
Recordo, ainda assim, o que diz a primeira estrofe
daquela canção:
A cantiga é uma arma
e eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria
A transposição para este contexto é simples de fazer:
«A palavra é uma arma / e eu não sabia / tudo depende da bala / e da pontaria»
– e assim sucessivamente.
O que este alerta exprime é que, em abstrato, as
palavras tanto podem ser uma arma contra como a favor da Democracia, tudo
dependendo do uso que delas fazemos.
Dou um exemplo, para mim nítido, através da breve
análise de um slogan político que todos conhecemos: «America great again» / «A
América outra vez grande». O que a transforma num perigoso exercício político
não é nada que cada uma dessas palavras significa por si, mas a bala (o seu
conteúdo ideológico expandido em programa político) e a pontaria (os visados
por essa mensagem).
Se confiarmos na lucidez poética de Sophia, ainda mais
extraordinário é o poder das palavras nesse slogan, sobretudo de uma delas:
apontando à pequenez dos ouvintes, tal como a caraterizei anteriormente, é
feita a promessa de recuperação de uma suposta grandeza perdida.
A palavra «grandeza», potencialmente tão bela em si
mesma, serve, aqui, enquanto álibi ideológico para mascarar a extrema pequenez
do projeto político: «O abutre é sábio e alisa as suas penas.»
Para ser coerente comigo mesmo, deveria defender que a
melhor defesa contra os ataques à democracia perpetrados pelas palavras dos
seus inimigos seriam outras palavras, tão ou mais fortes do que aquelas.
Numa democracia efetivamente baseada nos ideais do
Iluminismo, seria seguramente essa a melhor solução para tão difícil problema
da contemporaneidade.
Acontece que o uso empobrecido, abusivo e irracional
das palavras, algumas das quais fundadoras da própria Democracia, inundou o
espaço público, contaminando todos os discursos: uma das mais inteligentes
artimanhas dos abutres é a de poluírem o discurso político e jornalístico com
as suas palavras e as suas ideias de tal modo que as nossas palavras ficam elas
próprias doentes e enfraquecidas.
Até são capazes de usar as nossas palavras mais belas
para exprimirem coisas abjetas. E o tempo que gastamos a contestar ou a
denunciar essas habilidades linguísticas é tal que causa um enorme desperdício
de energia.
É que, reconhecendo numa Democracia profundamente
vivida a maior ameaça aos seus desígnios, os abutres nunca vêm verdadeiramente
ao nosso terreno, mas preferem convocar-nos dissimuladamente para o deles –
aquele onde se propaga a podridão de que se alimentam. Sempre que aceitamos
combater a guerra dessa maneira, perdemos.
A escolha da palavra «guerra», que acabei de fazer,
está implícita no tema que me foi sugerido: se, conforme me foi proposto, a
palavra pode ser uma arma da Democracia, então isso significa estarmos a falar
de contextos em que são necessárias armas para atacarmos os nossos inimigos e
nos defendermos deles.
Sim, trata-se de uma guerra. De um lado, estão aqueles
que, apesar de reconhecerem as suas fraquezas, acreditam generosamente na
Democracia enquanto veículo de construção de uma sociedade mais igual, mais
fraterna, mais livre, como acontece aqui nesta reunião de celebração do 25 de
Abril.
Do outro, aqueles que, usando a própria Democracia e
os instrumentos que ela proporciona, como a liberdade de expressão, a liberdade
de associação, o exercício do voto, etc., usando essas prerrogativas
democráticas em seu benefício pretendem minar os alicerces da Democracia, para
tal apoiando-se nas fragilidades individuais e coletivas que, como ninguém,
sabem identificar, alimentar e aproveitar.
Eu sei. A palavra «guerra» é desagradável e
desconforme com o valor democrático da tolerância, próprio dos sistemas
democráticos. Contudo, tem a enorme vantagem de expor, sem eufemismos, o que
vejo no mundo quando penso no tema que me foi proposto. A guerra já decorre. Só
falta declará-la corajosamente e agir em conformidade com isso, com palavras e
com atos.
A persistência nos eufemismos é instrumento de derrota
certa, porque é uma forma de ajudar o abutre a alisar as penas.
Termino reiterando o meu profundo agradecimento pela
honra que me deram do convite para me dirigir a vós neste dia evocativo do
sonho que o 25 de Abril de 1974 possibilitou.
Precisamos de sonhar, fortemente armados. Precisamos
de voltar a dar lugar às utopias nas nossas vidas. Precisamos de recuperar as
nossas palavras, mesmo que para isso tenhamos de as reinventar.
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